segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Os fundamentos históricos e teóricometodológicos do Serviço Social brasileiro na contemporaneidade

Os fundamentos históricos e teóricometodológicos do Serviço Social brasileiro na contemporaneidade

Apresentação


Este texto coloca em questão os fundamentos históricos e teórico/metodológicos do Serviço Social brasileiro na contemporaneidade, particularizando as décadas de 80, 90 e os primeiros anos do século XXI. Algumas referências acerca do Serviço Social latino‐americano também serão apresentadas. Parte do pressuposto de que a profissão e o conhecimento que a ilumina, se explicam no movimento histórico da sociedade. Sociedade que é produto de relações sociais, de ações recíprocas dos homens entre si, no complexo processo de reprodução social da vida. O mundo social é um mundo de relações.

São múltiplas as mediações que constituem o tecido de relações sociais que envolvem esse processo de produção e reprodução social da vida em suas expressões materiais e espirituais. Essas relações que constituem a sociabilidade humana, implicam âmbitos diferenciados e uma trama que envolve o social, o político, o econômico, o cultural, o religioso, as questões de gênero, a idade, a etnia etc. Dimensões com as quais se defronta cotidianamente o Serviço Social e em relação às quais se posiciona quer do ponto de vista explicativo quer do interventivo, considerados nesta abordagem como dimensões de uma mesma totalidade.

A análise dos principais fundamentos que configuram o processo através do qual a profissão busca explicar e intervir sobre a realidade, definindo sua direção social, constitui o principal objetivo deste texto. É necessário assinalar que essa análise das principais tendências históricas e teórico metodológicas da profissão, sobretudo nas três últimas décadas não é tarefa fácil ou simples, pois exige o conhecimento do processo histórico de constituição das principais matrizes de conhecimento do social, do complexo movimento histórico da sociedade capitalista brasileira e do processo pelo qual o Serviço Social incorpora e elabora análises sobre a realidde em que se insere e explica sua própria intervenção.

 
Assim sendo, este texto apresenta‐se organizado em três partes: em uma primeira introdutória, onde são apresentados alguns fundamentos relativos ao processo histórico de constituição das principais matrizes do conhecimento e da ação do Serviço Social brasileiro e em três outras, nas quais se busca uma aproximação às principais tendências históricas e teórico metodológicas do debate profissional nos anos 80, 90 e 2000. Encerram o texto algumas reflexões acerca das polêmicas atuais da profissão.

1 O processo de constituição das principais matrizes do conhecimento e da ação o Serviço Social brasileiro



A questão inicial que se coloca é explicitar como se constituem e se desenvolvem no Serviço Social brasileiro as tendências de análise e as interpretações acerca de sua própria intervenção e sobre a realidade social na qual se move. É claro que estas tendências, derivadas das transformações sociais que vem particularizando o desenvolvimento do capitalismo em nossa sociedade, não se configuram como homogêneas, mas são permeadas por diversas clivagens, tensões e confrontos internos. Isso porque, a compreensão teórico/metodológica da realidade, fundada no acervo intelectual que se constituiu a partir das principais matrizes do pensamento social e de suas expressões nos diferentes campos do conhecimento humano, é processo que se constrói na interlocução com o próprio movimento da sociedade.

O ponto de partida consiste, pois, da análise ainda que sumária, do processo de incorporação pela profissão:


de idéias e conteúdos doutrinários do pensamento social da Igreja Católica, em eu processo de institucionalização no Brasil;

 

  1. das principais matrizes teórico metodológicas acerca do conhecimento do ocial na sociedade burguesa;

 

Tecer algumas considerações sobre este processo é buscar compreender diferentes posicionamentos, lógicas e estratégias que permearam o pensamento e a ação profissional do serviço social em sua trajetória e que persistem até os dias atuais com novas articulações, expressões e redefinições.

Quanto ao primeiro aspecto, é por demais conhecida a relação entre a profissão e o ideário católico na gênese do Serviço Social brasileiro, no contexto de expansão e secularização do mundo capitalista. Relação que vai imprimir à profissão caráter de apostolado fundado em uma abordagem da "questão social" como problema moral e religioso e numa intervenção que prioriza a formação da família e do indivíduo para solução dos problemas e atendimento de suas necessidades materiais, morais e sociais. O contributo do Serviço Social, nesse momento, incidirá sobre valores e comportamentos de seus "clientes" na perspectiva de sua integração à sociedade, ou melhor, nas relações sociais vigentes.

Os referenciais orientadores do pensamento e da ação do emergente Serviço Social tem sua fonte na Doutrina Social da Igreja, no ideário franco‐belga de açã social e no pensamento de Sã Tomá de Aquino (sé. XII): o tomismo e o neotomismo (retomada em fins do séulo XIX do pensamento tomista por Jacques Maritain na França e pelo Cardeal Mercier na Bégica tendo em vista "aplicá‐lo" à necessidades de nosso tempo).
É, pois, na relação com a Igreja Católica que o Serviço Social brasileiro vai fundamentar a formulação de seus primeiros objetivos político/sociais orientando‐se por posicionamentos de cunho humanista conservador contrários aos ideários liberal e marxista na busca de recuperação da hegemonia do pensamento social da Igreja face à "questão social". Entre os postulados filosóficos tomistas que marcaram o emergente Serviço Social temos a noção de dignidade da pessoa humana; sua perfectibilidade, sua capacidade de desenvolver potencialidades; a natural sociabilidade do homem, ser social e político; a compreensão da sociedade como união dos homens para realizar o bem comum (como bem de todos) e a necessidade da autoridade para cuidar da justiça geral.

No que se refere à Doutrina Social da Igreja merecem destaque nesse contexto as encíclicas "Rerum Novarum" do Papa Leão XIII de 1891, que vai iniciar o magistério social da Igreja no contexto de busca de restauração de seu papel social sociedade moderna e a "Quadragésimo Anno" de Pio XI de 1931 que, comemorando 40 anos da "Rerum Novarum"" vai tratar da questão social, apelando para a renovação moral da sociedade e a adesão à Ação Social da Igreja.

É necessário assinalar que esta matriz encontra‐se na gênese da profissão em toda a América Latina, embora com particularidades diversas como, por exemplo, na Argentina e no Chile onde vai somar‐se ao racionalismo higienista. (ideário do movimento de médicos higienistas que exigiam a intervenção ativa do Estado sobre a questão social pela criação da assistência pública que deveria assumir um amplo programa preventivo na área sanitária, social e moral).

O conservadorismo católico que caracterizou os anos iniciais do Serviço Social brasileiro começa, especialmente a partir dos anos 40, a ser tecnificado ao entrar em contato com o Serviço Social norteamericano e suas propostas de trabalho permeados pelo caráter conservador da teoria social positivista
Efetivamente, a reorientação da profissão, para atender às novas configurações do desenvolvimento capitalista, exige a qualificação e sistematização de seu espaço socio‐ocupacional tendo em vista atender à requisiçõs de um Estado que começ a implementar políicas no campo social.

Nesse contexto, a legitimaçã do profissional, expressa em seu assalariamento e ocupaçã de um espaç na divisã sóio ténica do trabalho, vai colocar o emergente Serviç Social brasileiro frente àmatriz positivista, na perspectiva de ampliar seus referenciais ténicos para a profissã. Este processo, que vai constituir o que Iamamoto (1992, p. 21) denomina de "arranjo teóico doutrináio", caracterizado pela junçã do discurso humanista cristã com o suporte ténico‐cientíico de inspiraçã na teoria social positivista, reitera para a profissã o caminho do pensamento conservador (agora, pela mediaçã das Ciêcias Sociais).

Cabe aqui uma explicaçã: nem o doutrinarismo, nem o conservadorismo constituem teorias sociais. A doutrina caracteriza‐se por ser uma visã de mundo abrangente fundada na féem dogmas. Constitui‐se de um conjunto de princíios e crençs que servem como suporte a um sistema religioso, filosóico, políico, entre outros. O conservadorismo como forma de pensamento e experiêcia práica éresultado de um contramovimento aos avançs da modernidade, e nesse sentido, suas reaçõs sã restauradoras e preservadoras, particularmente da ordem capitalista. A teoria social por sua vez constitui conjunto explicativo totalizante, ontolóico, e, portanto organicamente vinculado ao pensamento filosóico, acerca do ser social na sociedade burguesa, e a seu processo de constituiçã e de reproduçã. A teoria reproduz conceitualmente o real, é portanto, construçã intelectual que proporciona explicaçõs aproximadas da realidade e, assim sendo, supõ uma forma de autoconstituiçã, um padrã de elaboraçã: o méodo. Neste sentido, cada teoria social éum méodo de abordar o real. O méodo é pois a trajetóia teóica, o movimento teóico que se observa na explicaçã sobre o ser social. Éo
posicionamento do sujeito que investiga face ao investigado e desta forma é "questão da teoria social e não problema particular desta ou daquela 'disciplina' " (NETTO,1984, p. 14).

No caso do Serviço Social, um primeiro suporte teórico‐metodológico necessário à qualificação técnica de sua prática e à sua modernização vai ser buscado na matriz positivista e em sua apreensão manipuladora, instrumental e imediata do ser social. Este horizonte analítico aborda as relações sociais dos indivíduos no plano de suas vivências imediatas, como fatos, como dados, que se apresentam em sua objetividade e imediaticidade. O método positivista trabalha com as relações aparentes dos fatos, evolui dentro do já contido e busca a regularidade, as abstrações e as relações invariáveis.

É a perspectiva positivista que restringe a visão de teoria ao âmbito do verificável, da experimentação e da fragmentação. Não aponta para mudanças, senão dentro da ordem estabelecida, voltando‐se antes para ajustes e conservação. Particularmente em sua orientação funcionalista, esta perspectiva é absorvida pelo Serviço Social, configurando para a profissão propostas de trabalho ajustadoras e um perfil manipulatório, voltado para o aperfeiçoamento dos instrumentos e técnicas para a intervenção, com as metodologias de ação, com a "busca de padrões de eficiência, sofisticação de modelos de análise, diagnóstico e planejamento; enfim, uma tecnificação da ação profissional que é acompanhada de uma crescente burocratização das atividades institucionais" (YAZBEK, 1984, p. 71).

O questionamento a este referencial tem início no contexto de mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais que expressam, nos anos 60, as novas configurações que caracterizam a expansão do capitalismo mundial, que impõem à América Latina um estilo de desenvolvimento excludente e subordinado. A profissão assume as inquietações e insatisfações deste momento histórico e direciona seus
questionamentos ao Serviço Social tradicional através de um amplo movimento, de um processo de revisão global, em diferentes níveis: teórico, metodológico, operativo e político. Este movimento de renovação que surge no Serviço Social na sociedade latino‐americana impõe aos assistentes sociais a necessidade de construção de um novo projeto comprometido com as demandas das classes subalternas, particularmente expressas em suas mobilizações. É no bojo deste movimento, de questionamentos à profissão, não homogêneos e em conformidade com as realidades de cada país, que a interlocução com o marxismo vai configurar para o Serviço Social latinoamericano a apropriação de outra matriz teórica: a teoria social de Marx. Embora esta apropriação se efetive em tortuoso processo.

É importante assinalar que é no âmbito do movimento de Reconceituação e em seus desdobramentos, que se definem de forma mais clara e se confrontam, diversas tendências voltadas a fundamentação do exercício e dos posicionamentos teóricos do Serviço Social. Tendências que resultam de conjunturas sociais particulares dos países do Continente e que levam, por exemplo, no Brasil, o movimento em seus primeiros momentos, (em tempos de ditadura militar e de impossibilidade de contestação política) a priorizar um projeto tecnocrático/modernizador, do qual Araxá e Teresópolis são as melhores expressões.

Já o tronco latino americano do movimento, sobretudo no Cone Sul, assume claramente uma perspectiva crítica de contestação política e a proposta de transformação social. Posição que, dificilmente poderá levar à prática frente à explosão de governos militares ditatoriais e pela ausência de suportes teóricos claros.

Sem dúvida, as ditaduras que tiveram vigência no Continente deixaram suas marcas nas ciências sociais e na profissão, que depois de avançar em uma produção crítica nos anos 60/70 (nos países onde isso foi permitido) é obrigada a longo silêncio.

 
Até o final da década de 70, o pensamento de autores latino‐americanos ainda orienta ao lado da iniciante produçã brasileira (particularmente divulgada pelo CBCISS), a formaçã e o exercíio profissional no paí. Situaçã que, aos poucos se vai modificando com o desenvolvimento do debate e da produçã intelectual do Serviç Social brasileiro e que resulta de desdobramentos e da explicitaçã das seguintes vertentes de anáise que emergiram no bojo do Movimento de Reconceituaçã:

  1. a vertente modernizadora (NETTO,1994, p.164 e ss) caracterizada pela incorporaçã de abordagens funcionalistas, estruturalistas e mais tarde sistêicas (matriz positivista), voltadas a uma modernizaçã conservadora e àmelhoria do sistema pela mediaçã do desenvolvimento social e do enfrentamento da marginalidade e da pobreza na perspectiva de integraçã da sociedade. Os recursos para alcançr estes objetivos sã buscados na modernizaçã tecnolóica e em processos e relacionamentos interpessoais. Estas opçõs configuram um projeto renovador tecnocráico fundado na busca da eficiêcia e da eficáia que devem nortear a produçã do conhecimento e a ervençã profissional;

  1. a vertente inspirada na fenomenologia, que emerge como metodologia dialóica, apropriando‐se també da visã de pessoa e comunidade de E. Mounier (1936) dirige‐se ao vivido humano, aos sujeitos em suas vivêcias, colocando para o Serviç Social a tarefa de "auxiliar na abertura desse sujeito existente, singular, em relaçã aos outros, ao mundo de pessoas" (ALMEIDA, 1980, p. 114). Esta tendêcia que no Serviç Social brasileiro vai priorizar as concepçõs de pessoa, diáogo e transformaçã social (dos sujeitos) éanalisada por Netto (1994, p. 201 e ss) como uma forma de reatualizaçã do conservadorismo presente no pensamento inicial da profissão;


a vertente marxista que remete a profissão à consciência de sua inserção na sociedade de classes e que no Brasil vai configurar‐se, em um primeiro momento, como uma aproximaçã ao marxismo sem o recurso ao pensamento de Marx.

Efetivamente, a apropriaçã da vertente marxista no Serviç Social (brasileiro e latino‐americano) nã se dásem incontáeis problemas, que aqui nã abordaremos, e que se caracterizam, quer pelas abordagens reducionistas dos marxismos de manual, quer pela influêcia do cientificismo e do formalismo metodóogico (estruturalista) presente no "marxismo" althusseriano (referêcia a Louis Althusser, filosofo francê cuja leitura da obra de Marx vai influenciar a proposta marxista do Serviç Social nos anos 60/70 e particularmente o Méodo de B.H. Um marxismo equivocado que recusou a via institucional e as determinaçõs sóio históicas da profissã.

No entanto, écom este referencial, precáio em um primeiro momento, do ponto de vista teóico, mas posicionado do ponto de vista sóio‐políico, que a profissã questiona sua práica institucional e seus objetivos de adaptaçã social ao mesmo tempo em que se aproxima dos movimentos sociais. Inicia‐se aqui a vertente comprometida com a ruptura (NETTO,1994, p. 247 e ss) com o Serviç Social tradiconal.

 

Estas tendêcias, que configuram para a profissã linhas diferenciadas de fundamentaçã teóico‐metodolóica tenderã a acompanhar a trajetóia do pensamento e da açã profissional nos anos subsequentes ao movimento de Reconceituaçã e se conservarã presentes atéos anos recentes, apesar de seus movimentos, redefiniçõs e da emergêcia de novos referenciais nesta transiçã de milêio.

Questões para reflexão:
Como se constituem e se desenvolvem no Serviço Social brasileiro as primeiras interpretações sobre sua própria intervenção e sobre a realidade social?
Quais as principais vertentes de análise definem‐se para a profissão no âmbito o Movimento de Reconceituação?
 



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